Foi o grande Odilon Nunes a afirmar, com sua reconhecida autoridade intelectual, que “a primeira página de nossa história é […] a primeira página da pecuária do Piauí.” De fato, ambas as histórias aqui se confundem e se completam, pois, irmãs siamesas, nasceram ao mesmo instante, marcadas pela mesma saga de lutas, desafios e dificuldades. Em tudo, a presença marcante do vaqueiro, envolto em sua indumentária característica, toda feita de couro (gibão, perneira, chapéu, peitoral e luvas), para enfrentar, destemido, os galhos e espinhos da caatinga traiçoeira.
No livro Sertões de bacharéis: o poder no Piauí entre 1759 e 1889, que lançarei nos próximos dias, procuro traçar essa trajetória da construção do Piauí. Aliás, naquelas remotas eras da conquista – meados do século XVII – nem o nome Piauí existia. Surgiria depois que fazendeiros luso-baianos, à frente as duplas de irmãos Domingos Afonso Mafrense/Julião Afonso Serra e Francisco Dias de Ávila/Bernardo Pereira Gago, transpuseram uma extensa serra e penetraram os então chamados Sertões de Dentro, em perseguição aos índios Gurgueias, que devastavam suas fazendas ao longo do vale do São Francisco. A serra tomaria a denominação de Dois Irmãos, enquanto que o território descoberto seria batizado de Piauí.
A partir dessa entrada, numa luta desigual e sem quartel, dar-se-ia a conquista paulatina do território, ora com a expulsão, ora com a submissão, ora com o trucidamento do elemento indígena. E, já em 12 de outubro de 1676, cuidava o governo de Pernambuco, a cuja jurisdição pertencia o novo território, de conceder, em sesmarias, as primeiras quarenta léguas quadradas de terras aos conquistadores, para fundação de fazendas de criação de gado (a légua de sesmaria correspondia a 6.600 metros e a légua quadrada, a 4.356 hectares).
Registra a crônica histórica que essas primeiras terras concedidas se localizavam justamente nas margens do rio Gurgueia, donde ressalta a conclusão inescapável de que o Piauí realmente começou pelo Gurgueia. Seguindo a trilha do gado e a marcha da conquista, eram ocupados os vales úmidos e se multiplicavam os currais, em impressionante rapidez. Centenas de léguas quadradas foram doadas. Graças à pujança de suas pastagens naturais, o eixo da conquista deslocar-se-ia para os vales do Piauí/Canindé, onde seria fundada a povoação da Mocha, mais tarde freguesia (paróquia), vila e sede da única comarca existente em terras piauienses. Transformada em primeira capital em 1759, com a denominação de Oeiras ostentaria tal posição até 1852, quando o conselheiro Saraiva, vislumbrando na navegação do rio Parnaíba a via natural de desenvolvimento do Piauí, fundou Teresina e para ela mudou o centro governativo da província.
Com a morte de Mafrense em 1711, cerca de trinta de suas fazendas, ocupando uma área calculada de 175 léguas de extensão por 71 de largura, nas quais chegaram a ser criadas mais de 70.000 cabeças de gado de toda sorte, foram legadas por testamento à administração do Colégio dos Jesuítas, da Bahia. Confiscadas pelo governador João Pereira Caldas, em 1760, seriam incorporadas ao patrimônio da Coroa portuguesa. Eram as famosas Fazendas Nacionais. Posteriormente transferidas ao Estado do Piauí pela Constituição federal de 1946, por emenda do deputado Adelmar Soares da Rocha, passaram a denominar-se de Fazendas Estaduais. Em relatório de 1931, com visível indignação, seu administrador, Isaías Pereira da Silva, avô dos(as) promotores(as) do tradicional Encontro de Vaqueiros de Aroazes, dava conta da dilapidação desse rico patrimônio ao longo dos anos, pois restavam apenas 3.665 cabeças de gado.
Por quase duzentos anos, e até o surgimento da maniçoba, da carnaúba e de outros produtos extrativistas nos albores do século XX, a pecuária foi o sustentáculo da economia do Piauí. Contudo, com a mudança da capital e o desenvolvimento da navegação no rio Parnaíba, a pecuária perderia espaço para o comércio. Pelo caudal parnaibano era intenso o vai-e-vem de pessoas, barcos e mercadorias entre Santa Filomena e o litoral, num frenesi que a todos encantava, prenunciando o raiar de um novo Piauí. Daí surgiriam muitas das cidades ribeirinhas. Infelizmente, a implantação da hidrelétrica de Boa Esperança, sem a consequente construção de suas eclusas, viria sepultar mais esse sonho.
Gado era poder. Reviver aquela época heroica, na figura do vaqueiro indômito, é preservar a memória historiográfica de um Piauí em cujas fazendas de criar, na poética de H. Dobal, “outrora havia banhos de leite.”
Jesualdo Cavalcanti – *Escritor, membro da Academia Piauiense de Letras