O Piauí é terra daquela porção conhecida como sertões de dentro, na época da ocupação do extenso país para além do litoral nordestino. Em quase dois séculos, as costas brasílicas já se mostravam pequenas para os interesses dos grandes potentados ou mesmo aspirantes a tal. Ao final do século XVII, era possível perceber no interior a presença de poucos homens e muitos gados controlando paisagens demarcadas com violência, ambição e fé. Os comandantes receberam vastas propriedades e alcunhas de destemidos e desbravadores; seus comandados, ainda que impelidos pela mesma coragem, pereceram nas páginas da história, assim como as centenas de milhares de mulheres e homens indígenas sob o ferro e o fogo; caneta e espada silenciaram quando haviam estabelecido as bases da formação da sociedade piauiense. Para os instrumentos, interessava legar fazendas pastoris, com a elite e o povo trabalhando lado a lado, realizando igualmente as mesmas tarefas, pois eram todos vaqueiros.
Contudo, se o desejo de riqueza levava à feroz penetração dos sertões, o domínio, a submissão e a disciplina eram condições para a permanência em solo árido para a sobrevivência. Salvo engano, os campos e rebanhos ensinaram rapidamente aos homens a estratégia para a harmonia entre eles em meio à vasta natureza. A liberdade vigiada no trabalho, como para os animais, passaria a ser o principal mecanismo de controle das relações sociais no criatório. Em razão da baixa densidade demográfica, a realização de tarefas exigia todos os braços disponíveis. No criatório, considerando os diferentes espaços produtivos e de comercialização, o trabalho era representado por um conjunto de tarefas específicas, personificadas por quem as realizava: o vaqueiro. Nas fazendas, poderiam ser vistos dois tipos de vaqueiros, segundo a classe social: os senhores e os seus trabalhadores, labutando de sol a sol nos diferentes serviços. Portanto, a necessidade de cumprimento das tarefas os aproximavam. Naquele contexto, realizavam-se assim duas atividades indispensáveis à acumulação senhorial: trabalho e controle dos trabalhadores escravizados, libertos e livres pobres.
Senhores vaqueiros não eram iguais entre si. Do ponto de vista da relação com a terra, havia os proprietários, os arrendatários e os posseiros. Havia ainda seus prepostos diretos, quase sempre livres pobres, responsáveis pela administração das fazendas com ou sem a presença senhorial, normalmente também denominados vaqueiros, sendo-lhes possível, com trabalho e subserviência, alcançar a cobiçada categoria dominante. Também não se igualavam quando se tratava do tamanho da terra e rebanho. Mesmo assim, formavam a classe de fazendeiros piauienses que consolidava, de norte a sul, um espaço produtivo unificado pelo interesse pastoril assentado na propriedade da terra. Cabe ressaltar que senhores, independentemente da origem e padrão de acumulção, não se tornaram vaqueiros por gosto. Passaram a desenvolver o prazer por vaquear na medida em que eles e seus descendentes se distanciavam do trabalho obrigatório, prática consolidada no já no final do século XIX. A partir de então, a experiência originária da labuta da elite no pastoreio foi gradativamente reelaborada para a valorização do seu trabalho como elemento de qualificação e legitimação do processo de domínio, bem como de representação social de pertencimento e identidade sertaneja piauiense. Certamente, representação orientada pela experiência dos vaqueiros trabalhadores, haja vista a elite há muito desconhecer, na rotina diária, a dura labuta do pastoreio.
Solimar Oliveira Lima é Professor doutor do Departamento de Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Piauí.